quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Luz, Câmera, Poesia


A FLOR DA PELE
Ao conter-me o corpo evitando seu transbordo
Faço-me em forma no mundo das formas
Onde o sonho de ser se auto-realiza em marcas
Que o tempo impôs ou a consciência expressou

Resisti a tempestades e insolações dum tempo atroz
Quando a ventania que hoje refresca, ontem ardia
E açoitava-me não somente o corpo, mas coração
Segui no avesso de mim, errante desventurado

Mas eis me reencontrei quando a vi desabrochar
Viçosa e linda, ainda que sob sol e chuva
Sensível e forte é a flor do paradoxo da vida
Ensinando-nos a beleza do mundo, apesar dos outros

Autor: João Vitor Maués


DIVINA LIRA

Quando cantastes
Vênus e Marte se apaixonaram...
De tão Bela que é a freqüência de teu timbre
Desafiastes a vaidade de Narciso...

Quanto a mim, simples mortal
Só me resta mover meio mundo
Em busca do prazer de tua lira...
Porque sei que quando cantas
As estrelas caem do céu

Autor: João Vitor Maués


ESPERANÇA

Quando duvidei da solidão
Tive coragem e, de peito aberto, te rejeitei...
Hoje eu sei
Estou descalço
Não me restou nada
Perdi a certeza
Perdi o foco e se foi o sonho,
O que me sobrou?
A noite fria, a parede nua de José
Aquele que caminha, marcha... Para onde?
A vida hoje crua suplica pela flor da náusea
Pelo menos ela, mesmo sem todas as pétalas
Mas que brote do chão
Da terra de onde vem a vida nova
Sem medos, sem sustos
Surgindo das profundezas férteis
De um solo nu
Onde o olhar corrompido não alcança
Nem zomba, só nasci, recomeça...
Que venha plena
Que seja nova
E não duvide

Autor: João Vitor Maués


14/10/2012
Era tempo de certezas
Soubera que tinha um foco
Perseguira-o como uma caça
A ser abatida e dominada
.
Mais eis que se levantou "roda viva"
Refratando objetivos
Nos fazendo objetos
Hoje meus verbos estão todos no infinitivo
Sonhar, apaixonar,encantar, amar
E o que fora linear
Agora é só desvio

É sempre assim
Chega de mancinho, periférico
E quanto menos esperamos
Assalta-nos a existência
E vira centro

Está no meu peito
Me acompanha para todo canto
Me desconcentra
Me desconstrói
E com distinto protocolo
Me reconstrói

Jogou fora minha agenda
Tenho um novo estatuto
Escravizado? Não sei
Apenas sei de uma coisa:
Não consigo mais viver longe do teu mundo
Longe da tua vida
E do teu fascínio

Autor: João Vitor Maués

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A Poética de um Povo

Sabor Açaí – Nilson Chaves

E pra que tu foi plantado
E pra que tu foi plantada
Pra invadir a nossa mesa
E abastar a nossa casa
Teu destino foi traçado
Pelas mãos da mãe do mato
Mãos prendadas de uma deusa
Mãos de toque abençoado
És a planta que alimenta
A paixão do nosso povo
Macho fêmea das touceiras
Onde Oxossi faz seu posto
A mais magra das palmeiras
Mas mulher do sangue grosso
E homem do sangue vasto
Tu te entrega até o caroço
E a tua fruta vai rolando                                                                                                                                 Para os nossos alguidares
E se entrega ao sacrifício
Fruta santa fruta mártir
Tens o dom de seres muito
Onde muitos não têm nada
Uns te chamam açaizeiro
Outros te chamam jussara
Põe tapioca põe farinha d'água
Põe açúcar não põe nada                                                                                                                        Ou me bebe como um suco
Que eu sou muito mais que um fruto
Sou sabor marajoara
Sou sabor marajoara
Sou sabor.


     Durante a produção social da vida, sentidos vão sendo forjados pela manipulação simbólica dos indivíduos no trato relacional entre si, definindo rompimentos, assimilações, consentimentos, resistências, etc. Neste particular, a transmissão de todo o conteúdo de referências simbólicas às novas gerações é marcada  por acréscimos, substituições, imposições, permanências e continuidades. Na medida em que o tempo vai passando se estabelece uma espécie de decoro social implícito que constroe a cosmovisão dos homens, ensinando-os a como receber as diferentes situações que o cotidiano apresenta, é a Cultura e a História pesando sobre nossas vidas. Em função delas, compreendemos o mundo por meio da compreensão desses próprios sentidos, que vai desde um simples comportamento discreto dentro de um elevador, até a aceitação de uma religião como verdade cristalizada.

     Mas os homens, desenvolveram um meio pelo qual expressar sua cultura, e  o chamaram de Arte. Artista, portanto, é aquele que, tomado pelo auge da sensibilidade, tem a capacidade de medir as permanêcias e continuidades, rompimentos e assimilações, e traduzi-las esteticamente ao povo. Quando o povo reconhece sua própria identidade numa arte, e enxerga numa cantiga ou poesia suas experiências de vida mais autênticas, suas origens e história, essa então conquista a consagração. Muito embora atualmente a indústria cultural produza uma arte subdesenvolvida cujo único objetivo é o interesse comercial, construindo e impondo uma percepção bestial de arte, cultura e moda.

     Em “Sabor Açaí”, Nilson Chaves é muito feliz ao misturar poesia, cultura e música, porque a arte literária quando associada a música acaba por fundir duas linguagens capazes de realizar os movimentos de partida e retorno ao cerne de um povo e trazer consigo suas verdades permanentes escondidas sob camadas e camadas de pressões temporais. A literatura, especificamente, ao trabalhar com o simbólico, com o figurado, ultrapassa o palpável, estabelecendo-se num plano exterior à materialidade, metafísico, que rompe as estruturas cristalizadas do senso comum; já a música por representar não somente a tradução de sentimentos, mas sim o próprio sentimento em forma de melodia, acaba por mediar a relação entre o sujeito e a vida que o cerca, formando exatamente o todo dinâmico onde reside o musical.

     Nilson Chaves, ao metaforizar o povo paraense, usa do alimento típico presente em nossa alimentação diária, exaltando as propriedades naturais do açaizeiro e projetando-os nas características peculiares da existência do homem simples paraense. Ao mesmo tempo em que, no caminho inverso, representa no açaizeiro a potência de nosso povo:
“A mais magra das palmeiras
Mas mulher do sangue grosso                                                                                                                    E homem do sangue vasto
Tu te entrega até o caroço”.
Ainda endossando o lirismo metafórico, o eu-lírico assinala o caráter sensacional do paraense ao dizer “Que eu sou muito mais que um fruto, Sou sabor marajoara”, isto é, a compreensão do paraense perpassa necessariamente não por uma questão objetiva de conclusões baseadas na superficialidade, mas sim de sentir o que é ser deveras paraense, revelando-nos a poética de um povo quando da poesia se faz música. 

quarta-feira, 15 de agosto de 2012


Sexy e Sensual: As Mulheres e seus Anexos.



     O conceito de mulher sexy está muito próximo ao de mulher sensual, porque ambos percorrem caminhos semânticos parecidos na definição da mulher como objeto estético. Porém, os sentidos da língua portuguesa podem ser alterados ao sabor das idéias de quem se apropria de seus códigos, desde que se mantenha alguma relação de coerência com os mesmos, até porque as palavras sexy e sensual estão vinculadas às imagens que formamos em nossa cabeça e acionamos todas as vezes que alguém profere estes termos, numa mistura dinâmica de sociolingüística e subjetividade, que torna possível relativizar os conceitos.  

     Ser mulher sexy, portanto, está mais associado à forma física que constitui o corpo feminino e todos os seus derivados exteriores: roupas, sapatos, maquiagens, jóias, enfim, a estilização da imagem provocada intencionalmente para parecer mais sexy. Já no âmbito da sensualidade é necessário trabalhar a gesticulação, a postura, a conduta e o movimento, atributos subjetivos expressivos e reprodutores, no canal corporal, das idéias e do pensamento. Nesta chave de interpretação, a palavra sexy nos deixa um lastro de materialidade, onde o domínio do palpável é inalienável na definição do conceito. Na dimensão da sensualidade, temos fatores diferentes a considerar, pois ela é produto do interior da mulher, de suas percepções mais íntimas, da visão de mundo. A sensualidade é algo relativamente abstrato e, posto que se manifeste no corpo da mulher, não é oriundo dele, é fruto da alma.

     Querendo ser sexy, a mulher vai à academia onde malha o corpo; querendo ser sensual, a mulher vai à academia – Universidade – onde malha cérebro, porque nesta se estuda comunicação corporal, linguagem não verbal, expressão visual, teatro, História, Música e poesia. Por vezes, o fator genético endossa o caráter sexy feminino, haja vista que algumas mulheres são contempladas geneticamente com o padrão físico do ideal estético vigente, em outros casos persegue-se a beleza, através de sucessivas investidas em lipoaspiração, depilação, plástica corretiva, etc. Isto me faz lembrar um ritual de passagem da tribo Kamayurá no Mato Grosso, cuja transição – das mulheres – da condição de jovem à adulta se estabelece por meio de um retiro de alguns anos das mesmas, durante esse período seu corpo é alvo de constantes suplícios, nos tornozelos e joelhos, como forma de preparação para uma vida virtuosa na tribo. Essa idéia de virtude e afirmação está associada à preparação anterior do corpo da mulher que, não sem dor, toma a forma adequada aos parâmetros convencionais daquela tribo. Guardando-se os devidos contextos, tanto a mulher índia, com o ritual de passagem de sua tribo, quanto a mulher “branca”, com a clínica de lipoaspiração e depilação, experimentam no corpo a seqüela oriunda de uma utopia humana de consagração estética.   

     A sensualidade não necessita de açoites nem tortura, ela é plena porque emerge de um espírito povoado pela arte de ser e não de estar, aqui estaria, portanto, a distinção fundamental: nunca se é sexy, mas se está sexy. O tempo é agente implacável com a mulher sexy, sua ação caminha na contramão da beleza, e logo o que um dia fora belo, agora é só agrura, carcomeu-se.    

     Os pormenores gerais de uma mulher sensual podem ser arrolados analisando sua personalidade, haja vista que para a sensualidade se expressar a própria envergadura do conteúdo espiritual feminino é ressaltado na medida em que sua ação é reproduzida no mundo sensível. A saber:

1.      Elas rejeitam a banalidade generalizada do mundo medíocre;

2.      Recusam o padrão escravocrata de estética propalado pelos imperativos do bagaço mental, e embora sejam vaidosas, suas verdades sobre a beleza estão vinculadas ao equilíbrio corpo\mente;

3.      Jamais aceitam serem chamadas de cachorras, safadas, novinhas, ou qualquer outro adjetivo que endosse estereótipos ridículos de um Mc qualquer, pela simples razão de não reconhecer em suas experiências tal condição;

4.      São independentes, mas sabem o ser: não se valem da independência para afrontar os homens, para mostrar que podem fazer e acontecer. Não. Naturalmente manifestam suas preferências, contudo, sem provocar constrangimentos ou situações embaraçosas;

5.      São absolutamente educadas, não necessitam gritar para mostrar que chegaram, porque na verdade não chegam, surgem, bem como a lua-cheia: silenciosa, misteriosa e exuberante em si mesma;

     Em se tratando do ser humano, logicamente não encontramos com facilidade a pureza sensual em sua plenitude, nem a totalidade do caráter sexy sem ponderações, porquanto as camadas de sociabilidade a que estão submetidas já lhes confere ressalvas. Recorro neste instante ao caráter predominante: se o sexy ou se o sensual. Posto deste modo, digo que há um princípio geral da ação masculina no mundo que baliza o tratamento das desiguais na medida de suas desigualdades, refiro-me a postura dos homens em face desses dois caracteres femininos dominantes, o sexy ou o sensual: diante de uma mulher sexy (predominante) a conversa perpassa por festas, carros e bebida; diante de uma mulher sensual (predominante), livros, Música e trabalho.  

     É muito interessante como as pessoas são capazes de se modificar simplesmente pela experiência do contato com os outros e com o mundo que o cerca, porque é neste diálogo que seu mundo se transforma. É possível que no universo cultural e material da mulher sensual houvesse a oportunidade de emancipação espiritual, crítica e ideológica que a conduziu ao encontro das rédeas da sensualidade. Por outro lado, é possível que a mulher sexy, sofrendo a submissão contínua da sujeira mental introjetada por aqueles que insistem em deixar o povo naquele mesmo lugar marginal de anos a fio, permaneça no lugar comum da ignorância servil. Uso o termo “possível” porque compreendo que outras possibilidades acontecem na vida das pessoas, uns com cara de circunstância outros como desafio, mas seja como for, caso não passe pelo filtro do pensamento crítico, como diria Fernando Pessoa: “teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.    

Do Espírito das Piriguetes

     Causa e efeito, palavra e gesto, discurso e ação podem ser tomados por categorias mentais indissociáveis na definição dos homens em sociedade. Não é possível, segundo o que consta nesta prerrogativa, conceber uma explicação plausível ao comportamento humano lançando mão do binômio palavra\ação, cuja mediação está assentada nas operações íntimas do pensamento. O pensamento por sua vez, posto que seja livre, dialoga com diversos fatores distintos, variando com os sinais que vão sendo apresentados no cotidiano, quais sejam: novelas, filmes, artistas, personalidades, a relação sujeito-sujeito, sujeito-objeto, sujeito-natureza, etc. Apesar do caráter íntimo com qual o pensamento se articula, ocupando a dimensão subjetiva dos indivíduos, ainda assim não exclui a possibilidade viva do acesso de segundos e terceiros às suas entranhas, pois, não querendo os homens reservar a si mesmos os seus sentimentos, desenvolveram duas linguagens – a fala e a imagem – e desde então suas almas foram traduzidas. 

    Palavra e imagem associadas são reveladores das verdades alheias, porquanto permitem aos astutos penetrar no horizonte mental das pessoas, mapeá-los, e por assim dizer, conhecer seus desejos mais reservados, seus objetivos, medos, dramas, frustrações, preferências e tragédias. Foi, por exemplo, uma estratégia desenvolvida pelos jesuítas do século XVII, quando da cristianização dos indígenas na Amazônia, incutir a língua portuguesa naqueles homens, porque os padres da Companhia de Jesus sabiam que por meio desta, conquistariam o acesso ao pensamento dos índios, uma vez que para pensar é necessário acionar mecanismo cerebral específico, e uma língua em comum se torna peça fundamental para quem quer saber qual a linha de raciocínio que cerca uma palavra, uma frase, etc., já que linguagem são signos que nos servem de recursos concretos para a manifestação de nossas mais profundas demandas.

     E é exatamente baseado nos pressupostos supracitados de palavra e ação que tentarei operar na análise geral do fenômeno do periguetismo, porque palavra (discurso) significa, nesta perspectiva, horizonte mental, e ação (imagem) é o reflexo no corpo e na vida dos códigos e imagens presentes no rol de referencias dos indivíduos, é a tradução concreta de um ideal estético, de um modo de ser\estar e sentir, e dos sentidos que norteiam uma trajetória. 

     Com freqüência tem se falado sobre esse personagem social muito em voga nesses tempos de esbórnia quase generalizada no Brasil: a Piriguete. Algumas pessoas, especialmente mulheres, divergem nas opiniões sobre o assunto, cujo discurso vai desde quem seja taxativa em dizer que as piriguetes são vagabundas (uma releitura da prostituição indireta), até quem concorde com essa postura feminina dizendo que faz parte da mulher moderna.

     Mas como identificar uma típica piriguete? Bem, algumas características da moda piriguete, de tanto evidentes que são, saltam aos olhos: roupas extremamente curtas (justas) e apertadas, o penteado ordenadamente esticado via chapinha, muita maquiagem no rosto resvalando ao visual noiva cadáver e gravíssimos problemas na construção do raciocínio coerente.

     É essencial ao fenômeno do piriguetismo a beleza física, para essas mulheres a medida da vida está vinculada diretamente à forma exterior das coisas, a validade de um relacionamento afetivo baseia-se no padrão corporal imposto pela mídia e acatado como verdade absoluta por elas. A futilidade povoa a consciência dessas pessoas, quando numa entrevista pergunta-se a uma piriguete por que ela se veste daquele jeito, a resposta é sempre a mesma: “porque o que é bonito é para se mostrar”. Analisando esse discurso proferido por elas e comparando com o da mulher que pensa, percebemos que o campo visual de uma piriguete é o mesmo do de uma mulher de verdade, todavia o que difere esses dois tipos femininos é a profundidade com que ambas enxergam, pois as primeiras, apaixonadas pelo superficial, por mais que se esforcem, conseguem alcançar apenas as aparências que, por vezes, não passam de um rascunho muito deformado da realidade; já as segundas, revestidas de recursos e com o olhar treinado, penetram na essência do ser humano e vislumbram outras possibilidades.

     A piriguete se emociona com o funk, porque esse estilo musical tem um significado central na afirmação de sua personalidade, suas letras dizem para o mundo quem ela é. Ademais, o funk é parâmetro hierarquizante do piriguetismo, e aquela que desce até o chão, embalada pelo som de Mc-Catra (o profeta das piriguetes) tem status elevado no meio das outras, estaria num patamar superior em relação às aspirantes. Elas não sabem conversar outro assunto que não seja roupa e festa, e quando perguntadas sobre a vida, o mundo e as artes, respondem laconicamente: “é verdade”, “com certeza”, “anram...”. Dada sua limitação mental. Não há nada mais entediante a uma piriguete do que um professor em sala de aula, porque este representa um empecilho ao sono da beleza, à academia ou ao encontro com o cara do som automotivo.  

     Voltando ao âmbito da indumentária, o ato de vestir-se diz muito sobre quem é uma pessoa, pois a ação de escolher voluntariamente uma roupa expõe nossas intenções de aparecer no mundo. Alguns, quando se vestem, preferem passar a imagem de tranqüilidade, portanto vestem branco; outros querem demonstrar credibilidade, usam o azul (por isso que o Jornal Nacional tem como pano de fundo o azul); querendo ser identificado como revolucionário, a cor é o vermelho, etc... As piriguetes desenvolveram uma técnica que, por meio da indumentária, chama-se a atenção dos homens, mas infelizmente sua estratégia tomou rumo nebuloso quando confundiu sensualidade com vulgaridade; elas saem com roupas chamativas que lhes atribui visibilidade, porém com prazo de validade para acabar, porque homem até sente atração sexual por piriguete, mas nada que se compare com a sensualidade, a elegância, a classe, o estilo e o poder de uma Mulher de Verdade, porque estas sim são eternas.   

sexta-feira, 27 de abril de 2012


O  DISCURSO DOS DESCAMISADOS

 
     Existe uma música cujo refrão é assim: "eu queria mudar, eu queria mudar, eu queria mudar, eu queria mudar". Posto isto, tomo a liberdade de fazer singelas considerações acerca de identidades.

     Reconhecer-se como parte integrante de um grupo, compartilhar de seus valores e alinhar-se aos seus referenciais simbólicos é condição precípua à existência do homem como sujeito. As relações entre os membros deste grupo no dia a dia vão delineando uma ética fechada na qual aquele que pretende se integrar, necessariamente tem de se adaptar.

     Por meio do trecho da letra da música supracitada, logicamente podemos depreender o lugar social de quem a escreveu e\ou interpreta, daqueles que a cantam, e até mesmo dos que dela se apropriam, seja para se aproximar de um mundo que não é o seu operando num universo simbólico que lhe é exterior, seja para legitimar uma conduta num plano particular e coletivo de afirmação fazendo dela uma plataforma por meio da qual se obtém status social para aqueles que a concebem como padrão.

     Chama-se aqui a atenção do leitor para uma questão fundamental: a palavra estética tem origem grega, aisthésis, e significa percepção, sensibilidade, aplicável a todo julgamento de gosto. Cada qual tem o seu. Em todo caso, a percepção do belo está condicionada aos parâmetros socioculturais vigentes que refletem os desdobramentos de um grupo, revelando por meio de “N” linguagens, por exemplo, o nível de escolaridade, a condição econômica, o lugar espacial em que moram essas pessoas, o tipo de relação que elas estabelecem com o mundo e qual a identidade a que elas se reconhecem.

     Os indivíduos partem, portanto, de suas experiências compartilhadas no seio social, através da assimilação ou coerção, pressão e resistência, para produzir juízos de gosto autônomos, conquanto, em certa medida, derivadas dos signos mais íntimos de seu grupo. Aí estaria a razão de uma frase muito reproduzida pelos cientistas sociais, a saber: “o homem é um animal que vive preso a uma teia de significados”, Max Webber.

     E em geral recorre-se ao corpo para representar categorias mentais associadas a tendências de pensamento. É no âmbito exterior que manifestamos o código de pertencimento que nos outorga a presença e aceitação num grupo, traduzindo princípios tanto mais uniformizantes quanto menos autônomos, não excluindo, contudo, a autonomia individual em sua totalidade.

     Uma das formas de “reação” (ou adequação) dos jovens, excluídos da possibilidade plena do usufruto material dos imperativos da moda e na tentativa de compensar a desproporcionalidade entre os ditames da ideologia estética dominante e sua real condição socioeconômica, é apelar para o mercado informal adquirindo roupas piratas de marcas consagradas entre os esportistas, artistas e formadores de opinião badalados pela mídia.

     Situados à margem do rococó social, os jovens da periferia de Belém servem-se dos shoppings populares a céu aberto como, João Alfredo, Ver-o-Peso, brechós, etc., para ir às compras em busca de camisas da Nike (escrito 90 dentro de uma circunferência), bermudas tactel da adidas, chapéus de cores vivas e sandálias Duppé, além de cordões de aço e o que é mais curioso: uma listra loura percorrendo a borda do cabelo. Sensibilizados pela experiência do contato diário com um dado referencial estético, esses jovens reproduzem e produzem elementos que lhes conferem identidade social e a oportunidade única de pertencerem a um grupo no espaço-tempo em que vivem.

     Na dimensão artística é do mesmo jeito: embalados pelo rap do momento que falam do cotidiano de crimes, prisões, exclusão, marginalidade, alguns desses jovens projetam sua vida nessas canções, identificando nelas experiências que lhes são familiares e refletem seu dia a dia. Assim a música participa da vida, testemunhando realidades, escancarando verdades, lançando luz às contradições do sistema, consubstanciando as essências de um grupo e revelando o discurso dos descamisados.














sábado, 31 de março de 2012

O eu-dramático, o eu-arrazado.






Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!
Misérrimo! Votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto,
E minh'alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.
Que me resta, meu Deus?
Morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já não vejo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!
Álvares de Azevedo

      Se eu tivesse uma máquina do tempo que me permitisse o acesso a meados do século XIX, perguntaria a Almeida Garrett (1799-1854), um dos introdutores da estética romântica em Portugal, e a Álvares de Azevedo (1831-1852) - da segunda geração - qual seria a origem de suas tragédias?
      É bem representativo de uma época certas condutas que retratam uma tendência de pensamento diluídas na sociedade. Lembro-me das aulas de literatura, quando de minha preparação para o vestibular, em que o professor Zé Maria – o famoso Zema – inspirado, tracejava linearmente as fases do Romantismo e discorria acerca dos aspectos da técnica literária do fazer poético de Garrett e Álvares de Azevedo, estabelecendo um diálogo entre os poetas e seu tempo. Logicamente que Zema, seguindo um programa cujo enfoque era o vestibular, privilegiava personagens da literatura que reuniam em si todos os atributos reflexos da sociedade de outrora: era o caso de Almeida Garrett e Álvares de Azevedo.
      A partir desse referencial poético, filho da disseminação de uma idéia de literatura e articulado com a concepção de modernidade à época, criado no seio daquela sociedade e para aquela sociedade, outros escritores adotaram essa estética como guia para descrever sua subjetividade. O desdobramento de tudo isso foi que com o passar do tempo, o Romantismo foi incorporando outros elementos que o renovaram e, de certa forma rompendo com certos formatos de composições literárias, seja na poesia, seja na prosa, endossando outros. E o ultra-romantismo que um dia foi tão valorizado e até mesmo desejado, passa a ser alvo de críticas, dentre outras coisas por se afastar da razão... Era a sucessão dos tempos anunciando a emergência do Realismo.
      Poetas românticos, desde então, passam a ser identificados com a pieguice, com o eu-dramático, o eu-arrazado, finalmente decretando a “falência” estética do movimento, mas de maneira nenhuma sua extinção, e a vigência de outra matriz literária.